Tuesday, February 27, 2007

Memória da Cidade


(Fot.de Joaquim Torres/Região de Setúbal Online)

     Aqueles que criticam os mandatos de Mata Cáceres na Câmara Municipal de Setúbal (1986-2001) usam em geral o estilo superficial característico do nosso tempo ignorante: sem profundidade histórica (nem para dizer mal!), não contextualizando nada, incapazes de definir um "antes", um "durante" ou um "depois" — e mesmo esse "durante" de 16 anos é tratado como se fosse um curto lapso de tempo, que caracterizam com uma ou duas banalidades.
     Eu, confesso, costumo divertir-me à custa desta ignorância desmemoriada, e quando oiço as "análises" superficiais dos analistas do nosso terreiro costumo fazer uma ou duas perguntas chatinhas. Por exemplo: o que é que pensam os analistas do período imediatamente anterior a Mata Cáceres? Não pensam nada, é claro. Frequentemente, nem sabem sequer quem foi o Presidente que o antecedeu.
     Também não se lembram que o primeiro mandato de Mata Cáceres foi em coligação do PS com o PSD, com a Câmara dividida entre as cabeças do presidente e do "outro presidente", o super-vereador Sousa Pinto. Também não se recordam de quem desfez a coligação, tal como não sabem explicar porque é que Mata Cáceres teve logo a seguir maioria absoluta, etc., etc., etc.
     Se os "analistas" têm paciência para me continuar a ouvir, pergunto-lhes depois pela evolução da situação financeira ao longo destes anos. Não lhes pergunto números, apenas tendências: mas nem isso sabem. Ignoram que o mandato anterior do PC (1983/1985) foi de profunda crise financeira, com ameaças constantes de insuficiência para pagar vencimentos, com ausência de crédito até na lojinha da esquina, etc. Nem sabem que a situação melhorou substancialmente durante os mandatos de Mata Cáceres, ao ponto da Câmara ter feito um notável aproveitamento dos fundos comunitários durante a OID (uma das raras Operações Integradas de sucesso realizadas na União Europeia).
     Também não sabem situar os investimentos realizados ao longo deste tempo. Se lhes perguntam "quais as obras que não deveriam ter sido feitas" (ou, em alternativa, quais as que deveriam ter sido) estrebucham como peixes fora de água.
     Mata Cáceres esteve, no sábado passado, numa sessão pública que decorreu no Instituto da Juventude, a falar sobre tudo isto. Eu, na minha ignorância (também tenho direito à ignorância!) julgo que se pode aprender alguma coisa em ouvir quem tem conhecimento de causa - e memória - para nos ajudar a recordar a história recente da cidade. Creio mesmo que umas quantas sessões destas, com actores de vários quadrantes políticos, seriam muito úteis para os analistas desmemoriados.

     Mas não vos quero enganar: o que os analistas desmemoriados querem mesmo é continuar desmemoriados. Não desejam ouvir dados ou factos que atrapalhem as suas miríficas convicções. Seria uma grande maldade obrigá-los a ouvir Mata Cáceres dizer que recuperou a Câmara duma asfixia financeira em que o PC a tinha deixado atolada ou a enumerar as obras que fez e as iniciativas que teve, e que ainda são o que mantém a cidade a funcionar, desde a Estação de Resíduos Sólidos à ETAR, desde a Escola Profissional ao Festroia, desde o Museu do Trabalho à Biblioteca e ao Museu Sebastião da Gama.
     Moral da história: há um período "antes" de Mata Cáceres em que a cidade parou, imobilizada pelas dívidas. Há um período "depois" de Mata Cáceres em que voltou a acontecer exactamente o mesmo. E há um "durante" em que a cidade e o concelho conheceram níveis de investimento público notáveis (atendendo às parcas receitas que tradicionalmente tem), bem como de iniciativas de desenvolvimento. Como é que os analistas desmemoriados explicam isto? Não podem explicar...
     Uma referência para a imprensa da cidade (digital ou em papel) que fez uma boa cobertura deste debate, que também contou com a participação de Adriano Menezes. Julgo que os jornais poderiam ter ido um pouco mais longe e aproveitado para entrevistar mais longamente o antigo presidente. As cidades não ganham nada em ignorar aqueles que, numa dada altura, tiveram responsabilidades no seu governo. O calor emocional das campanhas eleitorais não é bom para a reflexão, pelo que é oportuno aproveitar estes períodos mais calmos para fazer essa reflexão.

8 Comments:

At 12:13 am , Blogger paulo pisco said...

Análise interessante...

Mata Cáceres tirou Setúbal da miséria em que se encontrava. Mas não conseguiu tornar Setúbal numa cidade de referência. Não estou a dizer que é tarefa fácil, no entanto, pode ser possível. A MC faltava visão. Tinha iniciativa, o que é muito importante mas isso, só, não chega. Quando saiu, Setúbal, voltou a ficar na miséria, pelo menos financeira e manteve um razoável atraso em relação às cidades de dimensão equivalente em Portugal.

Um abraço.

 
At 9:42 am , Blogger Joao Augusto Aldeia said...

Paulo: penso que há algum exagero nessa ideia de Setúbal como tendo estado na miséria, depois saído e depois regressado. Mesmo falando apenas da Câmara (que não é o mesmo que a cidade ou o concelho), nem sequer esse adjectivo me parece adequado: a Câmara continua a receber receitas substanciais, que utiliza para a prestação de serviços usual em qualquer município. Onde se nota grande constrangimento é na capacidade de investimento, a qual, mesmo assim, não é nula.

Não há qualquer diagnóstico competente da situação financeira da Câmara: apenas o "estudo" feito pela empresa 'Andersen' e o relatório para fundamentar o pedido de contrato de reequilíbrio financeiro, documentos - esses sim! - indigentes e demagógicos. No entanto, foram aceites pacatamente e aprovados pelos órgãos políticos locais e pelas estruturas partidárias, provavelmente apenas por motivos de natureza táctica (espero que não tenha sido por incompetência técnica!)

Expressões como "miséria" e "falência", pelo seu exagero, apenas servem para deprimir a cidade e transmitir uma ideia (errada) de uma cidade inviável e que não se sabe governar. Creio mesmo que essa imagem, transmitida exaustivamente neste dois últimos mandatos, contribui fortemente para agravar a situação da Câmara e do Concelho, inibindo a iniciativa dos cidadãos e dos empresários.

Mata Cáceres tinha seguramente uma "visão" para a cidade e o concelho, e concretizou-a em grande medida. Pode-se discordar dessa visão, pode-se achar que se apostou demasiado em betão e em equipamentos - mas era precisamente aquilo que toda a cidade exigia, nomeadamente os seus órgãos políticos. Se faltou "mais" visão, foi à cidade como um todo e aos seus actores (políticos, económicos, culturais).

 
At 3:54 pm , Anonymous Anonymous said...

É natural que muitos de nós não se sintam particularmente satisfeitos com tudo o que vêm em Setúbal, mas acho que o "Cacerismo" (apesar de muitos aspectos negativos) tinha a virtude de apontar um caminho e de executar parte da teoria.
Acho que a actualidade deste município não tem sequer ponta para iniciar uma discussão a sério.
Mas é preciso ver o que correu mal no passado mais recente, pois o outro passado foi já julgado eleitoralmente. Correram mal as alternativas posteriores ao MC, de políticos (no poder ou na oposição) que não têm preparação ou interesse para desempenhar funções, que se preocuparam apenas com a própria imagem.
E correu mal também a concepção de um contrato de reequilíbrio financeiro feito por um Governo PSD - que não tinha qualquer mecanismo eficaz de controlo (e que culminou com a elevação da dívida do Município de 10 milhões de contos para a ordem dos 18 milhões).
José Luís Barão

 
At 4:54 pm , Blogger Joao Augusto Aldeia said...

José Luís: o que se passou em Setúbal, em termos de opções de fundo, foi igual ao resto do país: os investimentos foram canalizados para os sectores que tinham sido definidos como estratégicos a nível nacional, através dos Planos de Desenvolvimento Regional e subsequentes fundos comunitários. O que se fez neste domínio teve financiamento de 70 ou 75 % a fundo perdido. Alguém pensa que a Câmara de Setúbal, com as debilidades financeiras que sempre teve, poderia ter ido por outro caminho?

Mas, além disso, era convicção generalizada no país de que era esse o caminho certo, e era o que estava na agenda política. As críticas a essas opções só surgiram muito recentemente, vindas de fora (da UE) e rapidamente aceites pela intelligentsia nacional.

Mas há duas coisas a salientar da gestão Mata Cáceres: não se envolveu em nenhum projecto megalómano (como o Metro de Mirandela ou os estádios do Euro2004), mas sim num grande conjunto de pequenos projectos. Eu gostava de saber a opinião dos críticos a este respeito: defendem os grandes projectos? E quais?

A outra questão é esta: apesar de não se ter dado importância, no país, ao ensino, a Câmara de Setúbal apostou numa escola profissional, apesar de não haver pressão da opinião pública ou dos partidos nesse sentido. Escola essa que é um dos poucos casos de sucesso em Portugal. Escola que ainda absorveu dois outros projectos da região que faliram: a escola de comércio (iniciativa dum sindicato) e uma que se fez em Palmela.

Nos EUA diz-se: "you can run but you can't hide". Neste caso: podem criticar, mas dificilmente podem descer da generalidade e banalidade ao pormenor. Porque, se o fizerem, vão encontrar dois escolhos: têm de admitir aquilo que foi realizado, e têm de indicar um caminho e projectos alternativos, coisa que é mais difícil...

 
At 5:16 pm , Blogger Joao Augusto Aldeia said...

Sobre o contrato de reequilíbrio financeiro (CRF), um dia, se tal se proporcionar, poderemos fazer um debate instrutivo.

Embora eu considere que os actuais mecanismos de controlo dum CRF são frágeis, a verdade é que há aí subjacente uma contradição difícil de ultrapassar: controles e acções punitivas da administração central conflituam com a autonomia e legitimidade dada pelas eleições locais.

Ou seja: um CRF será eficaz apenas quando existir internamente a competência e a vontade de o executar, e nunca por constrangimentos legais e da administração central.

Em 1986 também se ponderou recorrer a uma figura deste tipo (na altura, designava-se como saneamento financeiro). E o raciocínio que fizémos na Câmara foi o seguinte: se nos vamos comprometer perante o Governo a tomar medidas de contenção, que depois nos podem vir "cobrar", porque é que não tomamos essas medidas por nós próprios, sem qualquer contrato ou empréstimo cujas prestações nos vão depois onerar pesadamente? (na altura, fizemos contas!...) E não se recorreu a tal contrato.

É fácil de perceber que uma batelada de dinheiro entregue nas mãos de uma Câmara constitui uma tentação muito forte. É certo que foi para pagar dívidas, mas ao "limpar" as dívidas de uma empresa, o que se está a fazer é a criar condições para que a empresa volte a conceder crédito (até porque as empresas funcionam da mesma maneira: é melhor ganhar obras ou vender bens e serviços, mesmo com o perigo de não receber a horas, do que nada.)

 
At 12:27 pm , Blogger Barao said...

Caro João Aldeia, concordo genericamente com tudo o que disse sobre a gestão de Mata Cáceres.
Permita-me só que discorde da sua visão sobre o poder punitivo do Estado no incumprimento dos contratos de reequilíbrio. A autonomia local é um valor que deve ser enquadrado em função das necessidades de rigor orçamental. O Tribunal Constitucional já analisou a nova Lei de Finanças Locais e concluíu pela constitucionalidade do diploma (incluíndo os artigos 40 e 41) e pela conformidade desta aos princípios de autonomia local. Aliás, a partir de agora, com a nova lei de finanças locais, os municípios podem até não requerer a concessão dos CRF, esta vai ser automaticamente accionada pelo Governo (nº 3 do artigo 41). Os municípios não cumpriam o acordado com o Governo (basta ver exemplos bem próximos), pelo que a lei de enquadramento dos CRF como estava era disfuncional e premiava gestões obsoletas.
É claro que as realidades não se mudam meramente por decreto, mas neste caso o "decreto" ajudará a responsabilizar e credibilizar as gestões autárquicas.

 
At 1:14 am , Anonymous Anonymous said...

Caro J.A.

Se Heisenberg analisasse o seu artigo, teria concluído que o seu "princípio da incerteza" não se aplica apenas ao mundo quântico(o meu conhecimento do mesmo é superficial e, nem sei se o não fez, ao seu artigo de certeza que não, mas à interacção humana!)

Caro J.A.
O seu proselitismo cega-o ou, pelo menos, turva-lhe o espírito. Fala do aproveitamento dos fundos comunitários pelo M.C. em contraponto com a gestão que o precedeu, como queria que esta os aproveitasse tão bem, melhor ou pior, se eles não existiam!

Não me quero alongar mas, sempre queria dizer-lhe, que tenho observado a evolução de várias capitais de Distrito e, independentemente das cores políticas, poucas progrediram tão pouco como Setúbal durante o eldorado do fundos comunitários. Exemplos: Braga (mesmo partido) teve um desenvolvimento incomparávelmente superior ao de Setúbal, urbanístico, social cultural etc, afirmou-se como uma cidade universitária, Setúbal, neste ponto, está ao nível das mais fraquinhas tipo Bragança Guarda etc. Poderia apontar C.Branco etc etc .

Vejamos nestes últimos 24 ou 25 anos o que é que se fez em Setúbal?

1-Uns arranjos nas ruas da parte velha da cidade, sobretudo pavimentação, note que no resto, práticamente, não se revitalizou uma rua, taparam-se as mazelas com alcatrão sobre alcatrão, resultado: desapareceram os passeios em muitas delas (exemplo flagrante a rua 22 de Dezembro)
2 - O desnivelamentos do Quebedo (promessa de 3 ou 4 camapanhas)e das Fontainhas.
3- Ligeira intervençaõ no mercado do Livramento.
4 - O aborto da "radial" de Brancanes, també promessa reccrente duran 15 ou 16 anos.
5 - O sitema de tratamento dos esgotos. Talvez a menos rendosa politicamente, ainda que atrasada pelo menos uma dúzia de anos. Não sei da sua valia técnica.

Que se fez na rede viária? Quase nada. Deve ser a única capital de Distrito em que o trânsito pesado entra na cidade.

Que foi feito na rede de abastecimento de água ( que sabe bem o estado em que se encontra), nada!

Culturalmente: Era, há 25 30 anos, considerada a 3ª cidade do país. Hoje em que lugar se colocaria num hipotético "ranking"? Braga tem uma relevante Universidade, idem para Aveiro (não venha com a história da proximidade de Lisboa), Coimbra, Evora, Faro até a minúscula Vila Real! Setúbal tem um I.Politécnico como tem a Guarda, Bragança , Beja , Portalegre , cidades com 15 a 25 mil habitantes e historicamente deprimidas..

Eu que me considero o que mais me é possível, equidistante dos actores da cena política citadina e nacional, acho que seria muito útil poder comparar o desempenho das pincipais autarquias; recursos, realizações,etc. no fundo, uma contabilidade e prestação de contas credíveis! Afinal um "contabilista" precisa-se para acabar com muita discussão. (Eu sei , eu sei que o Salazar tinha razão; em política o que parece é e, assim, pouco adiantaria mais ou menos rigor na informação prestada)

Cumprimentos

 
At 2:58 am , Blogger Joao Augusto Aldeia said...

Caro anónimo: o argumento do meu texto é apenas o de que existe uma crítica ao período dos mandatos de Mata Cáceres que é baseada na ignorância e/ou num enviezamento partidário igualmente ignorante. Também posso apontar críticas a esses mandatos, mas não era esse o objectivo, apenas motivado pelo debate recente em que Mata Cáceres participou. Depois respondi nos comentários a dois comentadores que conheço e cuja opinião prezo: e concedo-lhes parte da razão, como eles fazem a mim. Mas descanse: não desejo que me faça o mesmo. Passo bem sem isso.

Em primeiro lugar: não falei do "aproveitamento dos fundos comunitários pelo M.C. em contraponto com a gestão que o precedeu". Leia lá melhor, para ver quem (se) turva.

Foi um economista notável, Ronald Coase, que disse (embora não exactamente por estas palavras) que "se torturarmos os dados durante tempo suficiente, eles acabarão por confessar". Assim faz o caro anónimo, listando em tom de desprezo meia dúzia de obras (esquecendo outras tantas), e usando estratagemas como o de insinuar que a ETAR veio tarde demais. Ora a ETAR não veio tarde demais, porque antes não havia financiamento comunitário para a mesma. E, mesmo assim, foi um dos grandes responsáveis pelo agravamento do endividamento da Câmara. E esse mesmo desprezo utiliza para desvalorizar outras obras, dizendo que eram promessas de muitos anos. Não é lá grande argumento, pois não?

Quanto ao Mercado do Livramento levou uma cobertura totalmente nova e a maioria das bancas foi renovada: como é que pode dizer que foi uma coisa "ligeira"?

Mas repare: eu não ando (nem nunca andei) a fazer propaganda das obras feitas. Cito estes exemplos apenas para mostrar que críticas como a sua são pobres. Mas concedo não serão totalmente ignorantes, pois oportunamente omite outras obras, como os museus, a biblioteca, o Forum Luisa Todi e o Charlot, a Escola Profissional, as piscinas, o edifíco dos serviços técnicos, a estação de lixos, o quartel e equipamento dos Bombeiros, as obras de recuperação das Escarpas de S. Nicolau, ou iniciativas como o Festroia... Nestes casos, qual é o argumento? Tardias? Desnecessárias? Baratas em demasia?

Só mais uma coisa: Setúbal nunca foi considerada a 3ª cidade do país em termos culturais, como afirma: era-o em termos populacionais e económicos (em sectores que pareciam fortes mas se desmoronaram facilmente por razões externas à cidade). Além disso, algumas das novas "maiores" cidades, ou são desanexações de Lisboa e Porto, ou são sítios de discutível qualidade de vida. Mas acredito que Setúbal tenha perdido para algumas outras, embora a proliferação de Universidades e institutos polítécnicos que refere seja outra miragem, conseguida à custa de influência política, miragem que também agora se começa a desvanecer.

Apesar da discordância, não deixo de agradecer o seu comentário.

 

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home