Tuesday, July 24, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [2]

Setúbal, 1818

     «Mas enquanto estávamos ocupados a admirar esta agradável cena aproximou-se um barco que identificámos como sendo da Alfândega. Vinham nele três ou quatro funcionários, à vista dos quais os nossos Joões começaram a resmungar e a praguejar (a) de tal modo que eu não percebia o que é que os irritara tanto, até que o Capitão me explicou que estas pragas vinham apenas para nos extorquir todo o tabaco, e não nos deixariam nem uma onça nas bolsas. E eu não me poderia admirar do seu desagrado ou raiva em tal ocasião, nem sequer ficar ofendida quando disseram que a América tinha todo o direito de se ver livre destas ratazanas. (b)
     «No entanto estes eram apenas os guardas que vinham prevenir que algo fosse levado para terra. Os outros vieram apenas de manhã. Recebemos a bordo figos, uvas e um delicioso vinho, do qual nos estamos a servir sem restrições. Estou encantada com os sinos — lá está a ouvir-se um agora mesmo, tal como o nosso Sino das Oito (c) clink, clink, como é bonito! Boa noite.
     «Houve uma busca geral por tabaco, e os nossos Joões entregaram as suas onças com uma tal boa disposição que me convenço de que não perderam todo o seu conforto (d). Apesar das pessoas que vieram a bordo terem um aspecto pessoal desagradável, encontrei grande diferença entre os seus modos e os dos seus equivalentes entre nós. Mostraram mesmo ficar atrapalhados quando viram as senhoras e desfizeram-se em mil desculpas (e). Como Mr. Nielson fala todas as línguas europeias, nós ficámos a saber tudo o queríamos por seu intermédio. Mas apesar de ele ter feito uma viagem pela Europa há poucos anos, nunca antes estivera em Portugal, e por isso desconhece os seus costumes. Ele está particularmente preocupado com a ida a terra, o que, segundo estas pessoas dizem, não poderá acontecer antes de dois ou três dias. (f)
     «Vê-se claramente que ele pretende tomar boa conta de nós, a qualquer custo — Deus o ajude, mal sabe ele como sou pouco inclinada a preocupar-me, sendo mais fácil eu rir do que chorar perante as pequenas contrariedades que temos encontrado nesta viagem. Oh, meu querido amigo! Oxalá fossem apenas estas todas as minhas preocupações — mas não nos aborreçamos nem discutamos, de acordo com a sábia doutrina que nos deve guiar. Reside em nós que os acontecimentos do destino se materializem. A recepção que lhes dermos e as voltas que em nós fizerem é que farão com que sejam bons ou maus. Mas de uma coisa, pelos menos, estou certa: é que se o meu amigo estiver feliz, eu jamais me poderei sentir infeliz. (g)
     «Fui interrompida por uma mensagem informando-me que os oficiais da saúde e a Santa Inquisição estavam a subir a bordo, e também que o Governador solicitava a honra de falar com as Senhoras Inglesas. Embora a Inquisição tenha já perdido a sua grande força, a simples palavra ainda provoca horror, e Miss Rutherfurd garante que eu empalideci só de ouvir o nome. Mas tal foi sem razão. Em vez de um severo Inquisidor quem surgiu foi um jovem e sorridente Padre, o qual, admito, tornaria qualquer penitência muito fácil para algumas de nós, caso fosse escolhido como nosso confessor. A nossa saúde foi certificada e as nossas bolsas, embora abertas, não foram devassadas. Ao abrir a minha bolsa reparei no olhar de extrema atenção de Mrs. Miller, a quem foi dito que, se alguma Bíblia fosse encontrada, o seu possuidor seria entregue à Inquisição (h). Ela tinha uma in folio, a qual transferiu para a nossa bolsa, e não teve sequer o cuidado de a esconder. Contudo não deram por ela.
     «O Governador falava bom Francês e o nosso Padre conversou com Mr. Neilson em Italiano (i). Beberam chá connosco e depois de fazerem o Capitão assinar um curioso conjunto de normas, para ele a para a sua tripulação, deixaram-nos com total liberdade para ir a terra quando quiséssemos e carregar os nossos baús (que eles marcaram) livres de qualquer outra busca.
     «Eu pedi a Neilson que me traduzisse as normas subscritas pelo Capitão, pelo imediato e por ele próprio, algumas das quais são as seguintes: que os ditos oficiais e a tripulação não deverão insultar nenhuma mulher que por acaso encontrem; que tirarão os respectivos chapéus perante membros do Clero e que não os insultarão de nenhum modo; que se ajoelharão perante a sagração da hóstia; que de modo algum insultarão a cruz, onde quer que haja uma, vertendo [águas], não importando a urgência das suas Necessidades, devendo retê-las até uma distância adequada. E muitas outras de igual importância foram subscritas.»

[continua]     outros excertos:
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Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

Notas:
Agradeço ao João Reis Ribeiro a informação de que ele próprio já tinha divulgado este texto de Janet Schaw, com transcrição parcial de alguns dos trechos relativos a Setúbal, no "Jornal da Região" e também no seu livro "Histórias da Região de Setúbal e Arrábida" (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2003).
(a) "Joões": referência à tripulação em geral; noutra parte do texto Janet refere-se-lhes como "honest Johns". Em calão actual "honest John" significa um homem bom e ingénuo, enquanto que um "John" é um "cliente de uma prostituta".
(b) a expressão usada, damly in the right, poderia ser considerada como praguejar, Janet, porém, não se deveria sentir ofendida. O tom de desprezo dos marinheiros é bem característico de quem não gosta de ser inspeccionado por alguém que considera inferior.
(b) "Sino das Oito": toque de recolher; expressão também usada metaforicamente para indicar que chegou a hora de terminar qualquer coisa, e é o que Janet aparentemente faz, interrompendo a escrita com um "boa noite".
(d) isto é, não entregaram todo o tabaco que tinham; é constante a contradição entre a dramatização dos comportamentos que supostamente os portugueses estariam a preparar e o que na realidade acontece, que é exactamente o oposto: um normal controlo alfandegário, sempre acompanhado dum comportamento correcto e frequentemente cordial.
(e) ou seja: foram muito mais correctos os funcionários portugueses do que eram habitualmente os ingleses.
(f) informação errada, que será desmentida logo a seguir. Este Mr. Neilson gostava mesmo de salientar a sua própria importância, dramatizando as expectativas, para depois prometer que faria tudo para poupar as senhoras...
(g) curiosa transposição: perante a evocação das atenções de Mr. Nielson, a autora realça a sua relação, certamente especial, com o destinatário das cartas; o parágrafo, um pouco misterioso, só se poderia entender mediante o conhecimento de circunstâncias que apenas eles dois partilham.
(h) ou seja, seria perigoso ser encontrado na posse de uma Bíblia protestante; mais um evidente exagero que o próprio desenrolar dos acontecimentos desmente.
(i) desconfio que este Neilson estava longe de saber falar "todas as línguas europeias".

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