Friday, August 10, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [5]

Arrábida - 1839

     «Deixaremos St. Tubes [Setúbal] amanhã e seguiremos para Lisboa — mas embora não seja uma longa viagem, a modalidade que há-de tomar tem dado não pouco trabalho a Mr.Nielson, cuja bondade e atenção não tem limites. Que seria de nós sem ele? Creio que teria sido impossível continuar. No entanto, fico um pouco incomodada pela sua ansiedade, pois como se manifesta alarmado em presença da nossa mais pequena inconveniência, torna-se permanentemente incómodo, já que estes incidentes teriam de acontecer constantemente na nossa presente situação. O modo como nos deslocaremos tem sido uma fonte de grande aborrecimentos, pois não se conseguiu arranjar outro meio que não seja uma albarda sobre um burro ou uma mula.
     «Quanto a mim, tinha estado a admirar a facilidade com que um grupo de mulheres do mercado se movimentam, com os seus gorros mounterrara (a), quando ele entrou no quarto e, com grande consternação, me contou que, segundo lhe parecia, não chegaríamos a Lisboa. Quando me informou sobre os problemas que já referi, disse-lhe que não seria isso que me iria impedir a Viagem, pois penso que a albarda é um método tão conveniente para viajar como qualquer outro que eu já tenha visto. O quê? Miss Rutherfurd e eu sentadas em albardas? Ainda que seja um método simples, ele não se sujeitaria a ver-nos viajar assim. Pedi-lhe que considerasse que não temos qualquer dignidade a defender em St. Tubes, e que a desgraça da albarda estaria completamente esquecida antes de chegarmos à Grã Bretanha (b) . Mas nada o demovia, e dizendo-me que estas aventuras pareciam mais fáceis em teoria do que na prática, saiu com um padre, que lhe arranjou a caleche de uma senhora nobre que está desterrada da Corte nesta terra, por se ter casado, sem consentimento do Rei, com um bravo oficial, o qual está preso numa das prisões dos arredores (c) , supondo-se que acabará por ser morto. Como ela tem relações muito influentes, ofereceu-se para se encerrar num Mosteiro, entregando toda a sua fortuna à corte, caso perdoem o oficial. Oh, Bretões, Bretões, como desconheceis o quão felizes sois! (d)
     «Com este assunto resolvido, fomos dar a volta às igrejas, a qual terminamos hoje. As novas vestimentas da Virgem estão mais de acordo com o gosto inglês, branco e prata, e azul e prata, são os preferidos. Mas numa das igrejas ela tinha uma peruca — mas para que estou eu a descrever-lhe o que conhece tão bem? No entanto, deixe-me dizer-lhe que não julgava possível que o simples, nobre e racional culto ordenado pelo seu abençoado Criador pudesse ser transformado numa farsa, tal como a que se representa aqui neste momento, a custa-me até a crer que os Actores não se riam de si próprios. Travámos conhecimento com vários padres, que me agradaram, e um deles ficou tão agradado com a nossa companhia que ainda não conseguiu encontrar o caminho para o Convento, desde que chegámos (d) - . Ele fica em casa do Sr. G---, um comerciante inglês, que nos acolheu na sua casa e nos apresentou à sua irmã, a qual, embora casada com um português, toma todas as liberdades de uma esposa britânica.
     «Encontramos nela uma excelente companhia, e como ela conhece toda a gente é muito melhor para ela. O nosso padre Francis tem uma alegre carinha redonda, bem como uma barriguinha igualmente anafada. Uma certa jovem Americana tem prendido, no entanto, a sua atenção, tanto como a sua sagrada Senhora; não que ele negligencie as obrigações para com ela, longe disso — de vez em quando larga as cartas e corre para junto de uma vela e um Missal, que está a jeito, repete as suas Avé Marias o mais depressa que pode, para logo regressar para junto do objecto da sua actual adoração, e, pedindo-lhe perdão, encolhe os ombros, dizendo que estas coisas têm de ser feitas. Este padre, cujos votos o obrigam à pobreza e mortificação, usa a batina muito graciosamente, com a capa pendente das costas de modo descuidado, e manifesta uma contenção adequada. Come monstruosamente e engole um copo de vinho a cada três ou quatro garfadas, e no fim do jantar está pronto para qualquer brincadeira. Tem, no entanto, uns modos decentes, e, no meio de uma conduta muito amalucada, apresenta uma sobriedade no olhar que não se encontra nos restantes.»

[continua]     outros excertos:
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Janet Schaw
Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

Notas:
(a) - "mounterrara caps": segundo o editor inglês, a palavra designa as monteras espanholas, gorros com 'orelhas'; as actuais monteras dos matadores de touros apresentam umas pequenas saliências laterais, mas existem modelos antigos em que a montera tapa completamente as orelhas (montera da Gran Canaria)
(b) - ou seja: sendo desconhecidos em Setúbal, não teriam que se preocupar que a sua dignidade fosse afectada pelo uso de uma besta albardada.
(c) - a palavra usada por Janet Schaw para prisão é bastile, palavra certamente derivada da prisão parisiense da Bastilha, associada ao despotismo do regime absolutista. A Bastilha viria a ser tomada pela população em 14 de Julho de 1789, data que marca o início da Revolução Francesa.
(d): ou seja, os Bretões (da Grã-Bretanha) desconheciam a sorte que tinham por viverem livres de regimes absolutistas, como o português da altura.

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