Monday, September 03, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [8]

Setúbal - 1839

     «À medida que avançávamos para o cume, deixámos para trás St. Tube [Setúbal], o mar, os navios, as grandes salinas, as belas ruínas, e uma região maravilhosamente verde das searas e pastagens. Perante nós tínhamos agora o rio Tejo, Lisboa e todas as terras adjacentes na margem oposta. À nossa esquerda observava-se uma cena nobremente selvagem e maravilhosamente romântica. As montanhas presenteavam-nos com rochedos e florestas, através dos quais fluíam rápidas correntes de água, caindo em ruidosas cascatas para os vales em baixo. E apesar destes vales se encontrarem repletos de plantações e nos convidassem a observar as vinhas, laranjais e olivais, era a Natureza que mais atraía o nosso olhar, tão fundo quanto os nossos olhos podiam penetrar nas florestas e sobre os rochedos.
     «Enquanto íamos comentando esta visão, Miss Rutherfurd observou que lhe fazia recordar uma descrição que ela sempre admirara, a da cena em que D. Quixote se encontra com o infeliz cavalheiro privado da sua razão. Todos nós concordámos com a justeza da afirmação, e nesse preciso momento, como de propósito, a cena foi completada pela aparição de um infeliz miserável na mesma situação descrita no livro. No profundo vale que dividia as duas montanhas, ele estava mesmo frente a nós, na vertente oposta, e podíamos vê-lo e ouvi-lo com clareza.
     «Estava quase completamente despido, o cabelo caindo sobre os ombros, enquanto que a rapidez com que saltava de um rochedo para o outro indicava claramente o estado da sua mente, e quando se aproximou do precipício, temi, com receio de que caísse. No entanto, parou já próximo do limite, e prostando-se de joelhos parecia implorar-nos, com as mãos erguidas, numa voz suplicante, que rapidamente se converteu num som selvagem, enquanto se manifestava num grande frenesim. Bateu no peito, arrepanhou os cabelos, e pelos gestos parecia estar a rogar-nos pragas, após o que, com terríveis gritos, regressou para lá das rochas e não o vimos mais.
     «Ficámos muito afectados com esta visão dum extremo da miséria humana, e o nosso cicerone explicou-nos que o homem tinha sido vítima da infidelidade da esposa, que ele adorava; matou o amante e refugiou-se no convento próximo de nós, mas ficou rapidamente privado da razão. No entanto, os frades decidiram tomá-lo a seu cuidado, apesar dele escapar muitas vezes para os matos e rochedos. Qualquer mulher que ele avistasse, julgava ser a sua mulher, dirigindo-se-lhe ao princípio com doçura, mas logo depois com raiva, pelo que era perigoso estar próximo dele.
     «Ficámos tão afectados por esta melancólica cena que acabámos de subir a montanha em silêncio, e chegámos ao topo quase sem dar por isso, e encontrámo-nos no Convento de Palmela, que dá o nome à pequena vila junta, conhecida pelo agradável vinho produzido no vale e encostas à nossa direita. Não sei se foi a agitação da cena presenciada antes o que nos predispôs a olhamos com particular deleite aquilo que se nos afigurava como o vale do contentamento, mas é verdade que nos trazia à mente uma forte ideia de felicidade rural, e este pensamento foi partilhado por todo o grupo. Parecia tudo uma grande vinha contínua, com algumas aldeias a povoá-la, cuja perfeição não é demais realçar, e toda a cena prefigurava humildade e segurança. Uma visão mais próxima poderia ter revelado o nosso engano.»

[continua]     outros excertos:
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Janet Schaw
Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

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