Wednesday, August 01, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [3]

     «Neilson, que desembarcara com os nossos Visitantes, regressou e informou-nos que, com a ajuda deles, nos conseguira excelentes alojamentos e que amanhã poderemos comer carne em terra, embora estejamos num período de rigoroso jejum. Ele transmitiu-nos um retrato verdadeiramente hilariante da Senhora que nos vai receber, a Senhora Maria, que lhe disse imensas coisas amáveis, a tal ponto que ele acabou por ficar receoso dela. Por causa disso convenceu-a de que era casado e de que a sua mulher o acompanharia. Imagino porque é que ele achou necessário dizer isto, e vou ajudá-lo com a minha protecção.(a)
     «Garantiram-me que o correio sairá de Lisboa dentro de poucos dias, e poderei enviar-lhe então estas cartas. Verá, pelas coisas que escrevo, que tivemos uma boa viagem, embora eu me tenha esquecido de o referir. Nunca foi preciso proteger as vigias nem fomos nunca incomodadas pelo tempo, embora tivéssemos uma brisa fresca durante toda a viagem.
     «Jantámos ontem com a Senhora Maria, uma dama rotunda, entre os trinta e os quarenta, mas muito Amarosa (b), de tal forma que Nielson teve de chamar a sua suposta esposa para o proteger de tantas atenções e carícias — as quais, para ser sincera, ela distribuiu igualmente por todos nós, abraçando-nos e fazendo-nos festas até ficarmos meio sufocadas. Mas isto não foi o pior: depois quis que conhecêssemos a sua criada. Era uma autêntica Maritornes do Don Quixote (c), com a sua jaqueta e olho torto; nunca eu vira semelhante coisa. Media tanto em altura como em largura. O seu cabelo parecia um arbusto espigado e, juntamente com os seus olhinhos piscaretas e o nariz de galo, compunha uma figura única. Eu temi quando se aproximou para me abraçar, já que o cheiro a cozinha era fortíssimo, mas felizmente revelou-se mais humilde do que a sua patroa, pois baixou-se e abraçou-nos pelas pernas, beijando-nos os pés, o que permitimos que fizesse sem no entanto a elevarmos aos nossos braços, como parece que seria normal fazer. A Senhora Maria informou-nos, com muita pena dela, que não era estalajadeira e apenas mantinha a casa para acomodação dos seus amigos, em cujo número, no entanto, ela nos incluía. (d)
     «Isto certamente teria causado surpresa a um Inglês — embora uma surpresa não tão grande quanto a ponte de Tay — mas eu, que me habituei a estas expressões de amizade com muitos mais no seu país, onde fui tratada como amiga mas com muito pouca cerimónia, e tive de pagar contas decentes, ou muito indecentes, por comida e bebida da qual provei uma parcela muito pequena.(e)
     «Após o jantar fomos ver a cidade, que em tempos foi magnificente mas que está agora em quase total ruína, em parte devido ao horrível terramoto.(f)»

[continua]     outros excertos:
 1  2  3  4  5  6  7  8  9 

Janet Schaw
Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

Notas:
(a) mais um ridículo mal-entendido do sr. Nielson, perante a afabilidade duma estalajadeira setubalense. No entanto, o ardil de Nielson para se defender da senhora não pode deixar de ser interpretado como um desejo oculto, consciente ou não. Janet, alegremente, entra no jogo. Honni soit qui mal y pense.
(b) 'Amarosa': sic no original. Um dicionário actual não inclui esta palavra, mas sim 'amorosa', com o significado de "mulher provocadora", "cortesã".
(c) figura algo grotesca da novela de Cervantes
(d) mais uma "história mal contada"; não sabendo falar português, Janet toma conhecimento destas coisas pela tradução de Nielson, que pelos vistos tem grande imaginação. Talvez tenha decidido ser ele a pagar a hospedagem, criando este estratagema para não constranger a sensível Janet. De qualquer modo, trata-se de uma charada que não termina aqui, pois acabarão por nem sequer dormir naquele local, como se verá.
(e) Ainda hoje existe uma grande diferença entre o caloroso acolhimento dado na Escócia, a forasteiros, e a frieza e indiferença inglesa. Janet recorre aqui à ironia, começando por dizer que um inglês sentiria surpresa pela amizade expressa pela Senhora Maria, mas não tão grande como comprida era a ponte de Tay, acrescentando que os ingleses lhe cobraram em excesso por comida e bebidas que escassamente lhe serviram.
(f) terramoto de 1755, ocorrido portanto vinte anos antes; tanto a "magnificência" como a "quase total ruína" são prováveis exageros; se o terramoto era uma das causas da destruição da cidade, quais seriam a outras? Não perca o próximo capítulo.

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home