Saturday, August 25, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [7]

Setúbal - 1839

     «Lisboa, 20 de Dezembro de 1775
     «Chegámos aqui a noite passada, após muitas aventuras, e estamos tão felizes quanto é possível fazerem-nos sentir os mais dedicados e afectuosos amigos. Porém, devo seguir a ordem das coisas, começando por descrever a nossa viagem, a qual se veio a revelar uma verdadeira tragicomédia, onde, muitas vezes, eu já não sabia se devia rir ou chorar. Começámos na caleche da nobre Senhora, que era na verdade muito adequada, tirada por duas excelentes mulas e conduzida por um cocheiro cuja cabeça faria inveja ao maior dos viajantes britânicos (a).
     «Mas o nosso inexcedível Governador [Neilson] estava tão contente por nos ter proporcionado estas condições de transporte que se esqueceu de tomar conta dele próprio, e deixou que um muleteiro lhe encontrasse três mulas — uma para a nossa bagagem, outra para um reles cicerone, e uma terceira para ele próprio, exigindo-lhe apenas que lhe arranjasse uma simples sela em vez de uma albarda. E conseguiu de facto uma sela, mas que não era uma sela vulgar, porque se tratava de um modelo francês que não via a luz do dia há pelo menos cinquenta anos, com uma espora ferrugenta num dos lados e uma caixa de madeira no outro, onde teve de enfiar os pés.
     «O muleteiro colocou a bagagem na melhor mula, o cincerone ficou com a escolha seguinte, enquanto que a arcaica sela foi colocada no dorso de uma mula que, à sua natural malícia, tinha somado os humores de pelo menos vinte e cinco anos de experiência, pelo que, tendo adivinhado que íamos subir uma montanha, recusou terminantemente mover-se. Foi em vão que o seu montador fez ressoar as botas nos seus costados: mostrou-se insensível a qualquer admoestação.
     «O dia estava horrivelmente quente, o sr. Neilson tinha-se estafado para nos conseguir estes meios, o que lhe provocou a reincidência duma febre, acompanhada de uma violenta enxaqueca. Não admira que a sua postura filosófica estivesse a ceder. A sua determinação tinha sido posta à prova de tal modo que esteve prestes a ceder a vitória ao seu antagonista. Veio então o muleteiro em seu auxílio, e com três ou quatro chibatadas nos costados da sua teimosa propriedade, convenceu-a finalmente a avançar, mas com a maior das lentidões, parando constantemente, até que o correctivo foi repetido, provocando desta vez um súbito arranque aos solavancos que levou o nosso amigo sentir todos os defeitos da velha sela. Isto não ajudou nada à sua dor de cabeça, nem o barulho dos chocalhos que enxameavam a mula da bagagem, a qual eu insistia em ter debaixo de olho, dada a fraca consideração em que tinha a honestidade do muleteiro português.
     «Um desinibido oficial português, que estava na parada quando entrámos na caleche, decidiu ajudar-nos, apesar de nos ser totalmente estranho, e observando as dificuldades do sr. Neilson, solicitou polidamente a honra de poder chicotear o animal. Por esta altura o sr. Neilson estava já tão saturado que não se importaria nem que fosse o Diabo a chicotear, e aceitou a oferta. Então a ridícula criatura começou a trotar à sua volta, montado num belo cavalo espanhol, fustigando o chicote sobre a mula e gritando: "Diabo, mula, mula". Foi-nos impossível evitar as gargalhadas, e até o nosso sacrificado amigo nos fez companhia, apesar da sua enxaqueca.
     «Eu, no entanto, fiquei extremamente aborrecida com este incidente, que ameaçava privar-nos da companhia do sr. Neilson para o resto do dia, na travessia desta gloriosa região, diversificada para além do que é possível descrever, com nobres edifícios a chamar a nossa atenção de quando em quando, mas sobre os quais não poderíamos obter qualquer informação, com o nosso cocheiro falando apenas a sua língua nativa, sem cicerone e com o nosso melhor instrutor afastado pelo seu confuso e bruto ajudante. Quantas vezes suspirei pela companhia do meu irmão, que teria apreciado esta paisagem em extremo, tornando-a ainda muito mais agradável por via dos seus judiciosos comentários.
     «Já impacientes, resolvemos finalmente abandonar a caleche e subir o resto da montanha a pé, que nessa altura se tornara de tal modo íngreme que as mulas apenas conseguiam puxar a carruagem. Toda a estrada estava repleta de mulas e burros, transportando vinho em recipientes de pele, até à zona ribeirinha. O sr. Neilson não se arrependeu de abandonar o seu teimoso meio de transporte, e com a ajuda do seu braço prosseguimos em condições aceitáveis, não sem parar numerosas vezes, para retomar o fôlego, mas igualmente para nos deliciarmos com a agradável vista que nos rodeava por todos os lados.»

[continua]     outros excertos:
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Janet Schaw
Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

Notas:
(a) - a palavra usada por Janet é "macaronie", arcaismo inglês que designava um dandy, jovem viajante dos séculos XVIII ou XIX, comportando-se com modos adoptados no estrangeiro. A palavra deriva do italiano maccarone .

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