Sunday, July 22, 2007

Diário de uma Senhora Distinta [1]

Setúbal, 1818
4 de Dezembro de 1775, a bordo do 'Georges' em St. Tubes

     «Entre as 10 e 11 da noite fomos guiados por um barco piloto, a que os marinheiros chamaram bear-cod [?], pois fazia lembrar um. Pelo Mestre foi-nos dito que estávamos mesmo no lado oposto a Lisboa, e embora fosse extremamente escuro, eu ansiava por sair do barco para visitar esta terra onde se encontravam os meus amigos, mas não foi pequena a minha surpresa ao ser informada de que o barqueiro que me levasse a terra seria enforcado, além de que não seria fácil dizer o que é que me poderia acontecer. Isto foi justificado pelas coisas que teríamos de fazer antes de podermos desembarcar, e eu fiquei mortificada pelo facto de estarmos tão perto do nosso porto e, no entanto, teríamos de esperar vários dias antes de caminhar em terra firme.
     «O Capitão também nos lembrou que não tínhamos o certificado de saúde e que corríamos, por isso, o risco de sermos enfiados num Lazaretto [local de quarentena]; mas, felizmente, Neilson era o próprio oficial que nos poderia passar o certificado, tendo consigo o selo, e não teve escrúpulos em o antecipar de um mês e de nos redigir um longo certificado em Latim. Os nossos receios de uma quarentena acabavam deste modo e dormimos despreocupadamente, pois esperávamos chegar ao porto pela hora do pequeno-almoço. O vento, porém, começou a soprar contrário e levámos quase um dia a avançar, e não chegámos à costa antes da tarde, que felizmente se revelou muito calma, e aqui tivemos o prazer de observar um céu italiano, tão belo como você me tem frequentemente descrito, e para o qual olhei com raro prazer, pois me trouxe à memória o que você me contou acerca deste e de muitos outros assuntos.
     «Mas eu não me absorvi totalmente nos céus, pois a terra também pedia parte da minha atenção, e as colinas, os rochedos, os vales, tudo se juntava para agradar aos olhos que tinham sido privados de tão deliciosa variedade, e confinados a uma imensa monotonia ou reverenciando pinheiros negros igualmente desagradáveis (a). A verdura agora é muito deliciosa e encontra o olhar por todo o lado. Embora este seja, sem dúvida, o tipo de terra que imaginei, tal como imaginei uma Ilha da Índia Ocidental tão grande como o mundo, fiquei enormemente impressionada com os nobres edifícios enquanto navegávamos junto à costa (b), até que fui informada pelo nosso piloto de que eram, na generalidade, prisões [bastiles] — oh que som horroroso e assustador para uns ouvidos ingleses!
     «Chegámos finalmente à baía, onde ancorámos a menos de uma milha da cidade de St. Tubes [Setúbal]. A cena no seu conjunto era muito viva e animada, particularmente quando associada à ideia de estar de novo na Europa. O fim de tarde foi óptimo, o Sol deslizando pelo horizonte e proporcionando uma beleza adicional às verdes colinas. O céu estava plácido e sereno; havia mais de cinquenta navios ancorados, e mais de uma centena de outros barcos envolvidos na pesca da sardinha e cantando Vésperas (c). A cidade enchia a perspectiva, com muitos moinhos de vento sobre ela, que eu penso ser um tema muito inspirador. A costa é extremamente escarpada e as colinas e planaltos, cobertos com searas ou pastagens, emanavam tal frescura que animavam perfeitamente os sentidos.
     «Mas enquanto estávamos ocupados a admirar esta agradável cena, aproximou-se um barco ...»

[continua]     outros excertos:
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Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776

Obra constituída pelas cartas redigidas por Janet Schaw, uma senhora escocesa. Pensa-se que teria entre 35 a 40 anos quando fez esta viagem à América, viagem que se iniciou a 25 de Outubro de 1774. Esteve nas Caraíbas, na Carolina do Norte e no Cabo do Medo, de onde partiu a bordo do 'George' em rota para Portugal. Chegou à nossa costa a 4 de Dezembro de 1775, conforme a descrição cuja tradução iniciámos hoje (o editor do texto crê que a data certa é 12 de Dezembro). Depois de alguns dias em Setúbal viajou por terra até Lisboa, onde ficou até meados de Janeiro seguinte, após o que regressou à Escócia (ver mapa da viagem).

As linhas onde Janet Schaw relata a sua chegada a Portugal deixam transparecer a emoção de quem demorou mais de um mês a atravessar o Atlântico e regressa à sua Europa passado mais de um ano, deslumbrando-se com a magnífica paisagem. Pelo seu relato também se percebe que os experimentados marinheiros se entretinham a impressioná-la com informações exageradas (sobre a possibilidade uma quarentena ou coisa pior, ou ainda estar a costa cheia de prisões) (d). É interessante o olhar feminino de quem chega a Setúbal e procura transmitir a alguém que muito admira — o destinatário das cartas, um amigo escocês — essa experiência. O conjunto destas cartas é muito reverenciado na Carolina do Norte pela sua importância histórica. No entanto, nunca ouvi qualquer associação deste relato à história de Setúbal, certamente por ignorância minha.

Notas:
(a) passagem obscura, cujo sentido me escapa; talvez se refira ao facto de ter estado confinada no interior do navio durante muitos dias. "Reverenciar pinheiros negros" poderia ser uma alusão à oscilação do barco e à visão dos mastros do navio, única paisagem disponível.
(b) talvez se refira ao Forte do Outão.
(c) estariam mesmo a cantar Vésperas? É possível que sim. Mais à frente no texto, durante a travessia do Tejo, refere que os barqueiros começaram a cantar Vésperas. Mas também poderia ser um canto de trabalho ao alar as redes.
(d) Veja-se, por exemplo, o caso do certificado de saúde: assustam a senhora Schawn dizendo-lhe que a falta do documento é grave. Mas depois o certificado aparece milagrosamente, porque — grande coincidência! — o sr. Neilson por sorte até trazia no seu baú o selo necessário! O próprio editor estranha o caso, até porque Nielson, embora nomeado, nunca chegou a tomar posse do cargo de oficial. Inconsistências deste tipo voltam a surgir mais à frente, com Nielson a exagerar sempre o seu papel de providencial salvador (mas há-de acabar humilhado pela teimosia de uma mula e enganado pelos barqueiros do Tejo).

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