Diário de uma Senhora Distinta [4]
«Após o jantar fomos ver a cidade, em tempos magnificente mas que está agora em quase total ruína, em parte devido ao horrível terramoto e em parte devido aos efeitos ainda mais devastadores do despotismo. Pude observar com os meus próprios olhos o palácio do Duque de Alvara [Aveiro (a)], uma ruína muito nobre. O seu destino, conhece-o bem, e eu ouso dizer que estamos de acordo em pensar que tanto ele como o seu filho, o Marquês, mereceram todos os castigos. Pois está para além de qualquer dúvida que atentaram contra a vida do seu soberano — um crime que não admite complacência.
«No entanto, tal como afirma Voltaire, não existe crime, por maior que seja, em que não percamos a razão, quando o castigo ultrapassa os limites da humanidade. Por isso a memória destes dois parricidas seria evocada com ódio, se apenas eles tivessem sofrido a morte. Mas quando vemos a vulnerável Duquesa, os dois gentis jovens ainda menores de 18 anos, sofrerem o mesmo horrível destino, apesar de serem completamente inocentes, a natureza revolta-se, e já não se pode considerar justiça, mas sim diabólica barbaridade. Nem parece ser menos chocante descobrir a impotência do poder extender-se a objectos incapazes de sentir ou compreender o castigo — uma filha pequena declarada infame e fechada num convento para se ocupar nas mais baixas tarefas; cinzas espalhadas ao vento; um palácio arrasado e o chão salgado, um outro inteiramente arruinado, embora as paredes ainda se mantenham o suficiente para observarmos quão grande foi em tempos esta família, cujo destino é silenciosamente lamentado neste país. Como sabe, a expulsão dos Jesuitas seguiu-se a estes acontecimentos, e com eles abrandou o poder da Inquisição.
«Visitámos diversas igrejas, que estão agora a ser decoradas para o Natal — a Virgem com roupas novas, umas vezes muito bonita, mas noutras muito gloriosamente ridícula. Algumas das igrejas são excelentes mas as imagens são em geral toscas e em nenhum lado vi pinturas de qualidade. Mas temos um convite para um convento de Missionários, amanhã, onde me dizem que tudo é nobre, e são ricos, embora pedintes por obrigação (b).
«Não será fácil para os marinheiros o cumprimento estrito das normas para não ofender a Cruz, pois encontramo-las tão próximas umas das outras, que estará muito longe do seu poder o evitarem qualquer ofensa. Na realidade esta profusão do mais sagrado de todos os assuntos choca-me enormemente. Encontramo-la sobre todas as portas em lugares de uso mais baixo. Observa-se a sua mais horrível violação, onde quer que se coloque a vista, e poder-se-ia pensar que tudo isto foi congeminado pelos Turcos ou Judeus, para ridicularizar e criticar uma religião que eles desprezam e descrêem. Não será aqui que me irei converter à fé Católica, pois não parece diferente de um espectáculo de marionetas.
«Tenho de lhe contar uma anedota sobre a nossa hospedeira Maria. Conduziu-nos através de uma casa muito desarrumada e suja, até que chegámos a uma espécie de arrecadação onde se encontrava um pequeno roupeiro. Colocou então uma expressão solene, e intimou Neilson a informar-nos que nos encontrávamos na sua capela privada; que não era rica, mas tudo o que podia poupar gastava com Deus. Eu aprovei o objecto da sua prodigalidade, mas não via nada na sua capela que valesse o que fosse para qualquer pessoa do mais baixo estado. Mas, ao abrir-se o referido roupeiro, fomos surpreendidos com a visão da Virgem e do seu filho em figurinhas, não muito maiores que o comprimento do meu dedo médio, acompanhados por uma multidão de santos liliputianos, vestidos com cores alegres e alinhados em boa ordem de cada um dos lados. Abriu então um pequeno altar desdobrável, no qual se encontravam todos os utensílios necessários para a devoção, em miniatura, todo o conjunto parecendo uma casinha de bonecas. A Senhora Maria ajoelhou e benzeu-se com devoção, ao mesmo tempo que o senhor Neilson libertava um grande suspiro (c).
«Eu fiz a uma pequena vénia, mas a Fanny observou tudo com o maior desdém. Mal a caixa foi fechada, a vivacidade da Senhora regressou, e abrindo as gavetas por baixo da sua igreja romana mostrou-nos o seu guarda-roupa, do qual não tinha a menor vaidade. Fez-nos depois oferta de algumas cruzes artificiais, e levou-nos para o canto mais afastado da capela, onde se encontrava um grande número de cestos de entrançado para venda, extremamente bonitos, dos quais lhe compramos vários. Se tivesse comigo mais dinheiro poderia comprar aqui muitas coisas, muito baratas.
«Ainda gastei algum dinheiro pois estou segura de que obterei crédito em Lisboa. E se não fosse por isso eu teria sentido um baque de cada vez que abria a minha bolsinha, que contém uma larga soma para um pobre refugiado, e da qual eu nunca perco vista, dado que não tenho uma alta consideração pela honestidade dos Portugueses. Os quartos da Maria estavam tão sujos que não pudemos lá ficar. Neilson, na realidade, estava absolutamente decidido a levar-nos a dormir a bordo, de tal modo que não pude deixar de pensar que ele estaria com receio de se encontrar sob minha protecção nessa noite, em que me seria difícil manter a personagem de esposa.» (d)
[continua] outros excertos: |
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Janet Schaw
Journal of a Lady of Quality;
Being the Narrative of a Journey from Scotland
to the West Indies, North Carolina, and
Portugal, in the Years 1774 to 1776
Notas:
(a) Refere-se ao Duque de Aveiro, José de Mascarenhas, acusado, com a família, de tentativa de assassinio do Rei em 1758. O processo judicial impressionou o mundo pela extensão do castigo a toda a família, incluindo crianças, pelo uso da tortura durante os interrogatórios, e pela barbaridade da morte em praça pública, precedida, por imposição da sentença, de violências destinadas a destroçar e desmembrar os sentenciados ainda em vida (1759). A Lisboa popular, como de costume, assistiu a tudo como espectáculo de primeira qualidade, tal como acontecera com inúmeros autos-de-fé.
(b) As esmolas podiam render somas consideráveis; por isso, os franciscanos da Arrábida, devido ao voto de pobreza, estavam proibidos de esmolar. Tinham de se contentar com os produtos das suas hortas e, diz-se, com lagostas que encontravam no Portinho...
(c) atendendo a que Neilson não sabia falar Português, toda a conversa deve ter sido deliciosa.
(d) recordemos que foi Neilson quem arranjou inicialmente aquele alojamento, tendo garantido que era excelente. Estariam os quartos sujos ou seria Neilson que estava assustado com a perspectiva de ali dormir com a "sua esposa", como sugere Janet? E haveria alguma verdade nisto, ou não passaria tudo de uma fantasia inventada em cada momento por Neilson? Estaria ele com medo da própria sombra?
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